A decisão do Supremo Tribunal dos EUA, em 24 de junho, marca um grande retrocesso na história dos direitos reprodutivos. A sentença Roe versus Wade foi anulada e o direito das mulheres a terem acesso à interrupção da gravidez deixou de ser reconhecido a nível federal. O que significa que cada Estado estadunidense irá agora decidir por si próprio.
No processo contra o governador do Texas Henry Wade, Jane Roe, pseudônimo de Norma Mccorvey, exigiu que lhe fosse concedido o direito de interromper a sua terceira gravidez com base no direito à privacidade como uma escolha livre em relação à esfera mais íntima de uma pessoa. Nessa altura, o Supremo Tribunal decidiu que o direito à privacidade, entendido como o direito à autodeterminação, tinha base constitucional e reconheceu a sua universalidade. As leis que proíbiam o aborto passaram, portanto, a serem ilegais em todos os Estados.
Como lembra a teórica marxista Jodi Dean, foi uma decisão muito importante, pois é a autodeterminação que dá sentido à identidade feminina. O ato de escolha em si envolve um caráter de afirmação profundamente feminista de rejeição à exploração masculina da dependência e da vulnerabilidade. Em 1992, este princípio tinha sido reafirmado e consolidado com a Planned Parenthood of Southeastern Pennsylvania v. Casey.
Jodi Dean, em Solidarity of Strangers, explica como as mulheres se adaptaram à sociedade pós-Roe. Para ela, as defensoras pró-vida redefiniram os problemas envolvidos nas relações sexuais, gravidez, e maternidade como testes de identidade feminina. A gravidez passou a ser entendida simultaneamente como uma decisão de não abortar, uma espécie de passagem heróica na qual a capacidade – da mulher – de nutrir era testada:
Confrontada com imagens, histórias, e “fatos científicos” que retratam o feto como uma criança inocente, a mulher grávida na narrativa pró-vida enfrenta o desafio de “salvar” (com as suas conotações de redenção) uma vida inocente e de realizar o seu papel como mãe. Cheia de metáforas religiosas de salvação, redenção, nascimento, e renascimento, o seu papel torna-se glorificado (santificado) como uma escolha para sofrer para o bem, para a vida, de inocentes. A gravidez é assim vista como um dom voluntário, e a discussão ainda se centra em torno da viabilidade e da concepção à medida que preparam o terreno para a luta entre a vida e a morte.
Deixa-se de lado, na visão pró-vida, a componente material da questão. O aborto clandestino sempre existiu e tem graves consequências. A possibilidade de imputação penal nunca dissuadiu as mulheres de recorrer a uma interrupção voluntária da gravidez, o que compromete a garantia de condições de segurança e o pleno exercício dos direitos em matéria de saúde sexual e reprodutiva.
O fortalecimento de grupos pró-vida é uma herança deixada pelo extrema direita. Supremacistas como Trump, que aparelhou o Supremo Tribunal nomeando juízes conservadores, são responsáveis por levar a cabo ataques às mulheres, invocado com grande força pelos fundamentalistas religiosos e pelas Igrejas evangélicas. Notamos também que, no espaço de apenas sete dias, o Supremo Tribunal derrubou não apenas o direito das mulheres à autodeterminação, mas autorizou orações nas escolas públicas e reforçou o direito de portar armas, declarando inconstitucional uma lei do Estado de Nova Iorque que a restringia. No Brasil, vemos movimentos parecidos.
Nos EUA, a batalha para abolir completamente o direito ao aborto já começou nos 50 estados, trazendo à luz uma divisão gritante entre o Norte e o Sul. Mesmo que o estado de Nova Iorque tenha declarado a sua intenção de assegurar o direito de aborto às mulheres, haverá muitas proibições e mais discriminação a nível nacional. Claramente, apenas as mulheres da classe média alta poderão viajar e ter acesso aos serviços de saúde, que nos EUA estão na sua maioria apenas disponíveis apenas através de seguros de saúde privados. Muitos estados conservadores também lutam contra o aborto farmacológico e a pílula do dia seguinte, enquanto se prepara uma marcha ainda mais ampla que afetará principalmente negros, hispânicos e nativos americanos.
Face a estas ameaças cada vez mais reais, o Parlamento Europeu, reunido em sessão plenária a 8 de junho, aprovou a “Resolução sobre as ameaças globais ao direito ao aborto”, apelando ao acesso ao aborto em qualquer caso. A resolução “pede para que a União Europeia (UE) e os seus Estados membros incluam o direito ao aborto na Carta dos Direitos Fundamentais”. “O acesso ao aborto está a ser corroído”, lê-se na resolução, que cita como exemplos Malta, onde o aborto ainda é proibido, assim como Polónia, Hungria e Eslováquia.
Herança socialista
Em 1920, o aborto foi legalizado pela primeira vez. Aconteceu na União Soviética (URSS) com um decreto fortemente apoiado por Alexandra Kollontaj, ativista pioneira da emancipação da mulher e a primeira mulher a se tornar ministra. Na URSS, durante o comunismo, o aborto foi legalizado e disponibilizado para todos à custa do Estado. O objetivo era proporcionar a interrupção da gravidez num ambiente seguro e com a ajuda de médicos em vez de terapeutas e pessoas não licenciadas.
Em Cuba, o aborto tornou-se um direito legal em 1965, sob proposta da Federação das Mulheres Cubanas. Uma década antes dos países europeus, como a França, legalizar o aborto.
Em Portugal, em 1940, durante o fascismo, o jovem militante comunista Álvaro Cunhal, com apenas 26 anos, defendeu a sua monografia de licenciatura sobre o tema do aborto. Cunhal viria a se tornar o maior líder comunista da história lusitana e, já o contexto histórico em que foi defendido o texto, era uma verdadeira vitória contra a pressão exercida pelos militantes de esquerda. Álvaro Cunhal estava preso e incomunicável há mais de três meses. Tinha sido autorizado a terminar as provas de licenciatura, mas escoltado pela PIDE. Sequer tinha conseguido terminar o trabalho, pois o texto tinha sido apreendido. Não menos indiferente de se assinalar era a composição fascista da banca: Marcelo Caetano (que iria depois substituir Salazar), Pedro Pita e Jaime Gouveia.
Naquela época, como lembra Manuela Pires, em texto no Avante, “enquanto os direitos das mulheres ainda eram uma realidade distante nos países capitalistas e inexistentes em Portugal, Álvaro Cunhal escolheu para estudo uma dramática realidade nacional: o aborto. Numa perspectiva marxista, plena de ideias e referências profundamente progressistas e revolucionárias, sob escolta policial e perante um júri de exame composto por célebres personalidades do regime fascista”.
A verdade é que a luta pelo aborto sempre veio de contextos revolucionários. Nos EUA, antes da decisão Roe x Wade, nunca foi suficientemente reconhecido que foram as mulheres negras do movimento dos Direitos Civis que iniciaram a luta pelo aborto legal, sobretudo em Washington. Essas militantes sabiam bem como, especialmente as mulheres racializadas, havia muito perigo nos abortos clandestinos. Em 1968, um pequeno grupo de ativistas negras de programas anti-pobreza e membros de Mulheres Radicais que trabalhavam nestas agências formaram uma coligação chamada Abortion Action Now e lançaram uma poderosa campanha pública.
O Centro de Direitos Reprodutivos mantém um mapa das leis de aborto em todo o mundo e em tempo real. Nele pode-se ver que os países que foram colonizados pelas potências capitalistas e hoje dominados pelo imperialismo são os lugares onde existem mais restrições do direito ao aborto. Esses países foram geralmente aqueles que experimentaram revoluções socialistas. Enquanto mulheres, em países capitalistas, lutavam pela liberalização de suas leis de aborto, nos Estados socialistas e ex-socialistas já era um direito antes mesmo que o mapa fosse criado. Mesmo com a queda do muro de Berlim, como lembra Nathalie Hrizi, em Breaking the Chains, o socialismo mudou tão profundamente as atitudes e estruturas sociais que ainda hoje podemos notar as diferenças.
Kristen Ghodsee, em Por que as mulheres tem melhor sexo sob o socialismo: e outros argumentos a favor da independência econômica, adverte que apesar da União Soviética ter sido o primeiro país a legalizar o direito ao aborto, o medo de que a queda da taxa de natalidade, combinada às devastações das guerras e da fome, fizeram com que muitas políticas anteriores fossem revogadas ou dificultadas. Apesar disso, ela reafirma o importante legado do programa das mulheres socialistas que encontraram solo fértil nas sociais-democracias, no contexto capitalista.
A descriminalização do aborto é uma vertente indissociável das responsabilidades dos poderes públicos em garantir o direito da mulher de decidir sobre o melhor momento e o número de filhos que ela deseje ou possa ter. O Estado deve promover o planejamento familiar, garantir a educação sexual nas escolas e implementar uma rede de estruturas sociais de apoio à família, como creches e jardins de infância para todos. O aborto é apenas uma parte dos cuidados de saúde, da luta pela justiça reprodutiva.
A luta pelo socialismo é uma luta para que as necessidades da classe trabalhadora sejam satisfeitas, para que tenhamos os recursos e a riqueza para vivermos todos com dignidade. Enquanto o sistema não fizer valer os cuidados reprodutivos como direitos fundamentais, os únicos direitos garantidos serão os dos capitalistas e seus mecanismos de obtenção de lucros. Garantir o direito ao aborto não é apenas uma luta feminista, mas uma luta de todos.
Sobre os autores
é jornalista, doutora em literatura pós-colonial comparada e estudos ibéricos e mora na Itália.